Tribunal do Júri é sinônimo de democracia na
justiça criminal. Nele, a sociedade abandona seu tradicional papel de convidada
de pedra nos foros judiciais e passa a ser protagonista na solução de caso que
envolve ataque contra o principal direito do ser humano, a vida.
A oralidade é ponto marcante no plenário de
julgamento popular. Segundo a lei processual penal, concluídos os debates entre
Ministério Público e defesa, o juiz presidente indagará dos jurados se estão
habilitados a julgar ou se necessitam de algum esclarecimento sobre questão de
fato[1]. Em
seguida, lido e explicados os quesitos, ocorrerá a votação em sala especial,
tradicionalmente conhecida por sala secreta.
A sala secreta, que alberga a votação dos
quesitos e a apuração dos votos, é o ponto culminante do julgamento, uma fase
tensa e delicada. É, como dizem os anglo-saxões, o backbone - a espinha dorsal - da sessão do Júri. É o momento da
decisão da causa, em que os jurados, soberanamente, sopesam a tese (afirmação)
e a antítese (negação) apresentadas pelas partes e realizam a síntese
(conclusão) do julgamento.
O sufrágio e o escrutínio, como todos os atos da sessão de
julgamento, são presididos pelo juiz. Suas atribuições estão numeradas no artigo
497 do Código de Processo Penal. Por
óbvio, sua postura no julgamento é fundamental para a garantia da independência
dos jurados na escolha dos veredictos. Uma difícil missão, pois deverá a todo
momento presidir a sessão, porém, sem influenciá-los.
Firmino Whitaker, em obra clássica[2],
ensinou que o juiz presidente, dentre outras qualidades, deve ter
imparcialidade absoluta, discrição nos atos, gestos e palavras durante a sessão
de julgamento.
Daí a aprumada e escorreita lição de Edilson
Mougenot Bonfim[3]:
“Se existe um fiel da balança no júri é o juiz. Não pode se envolver nos
debates, ainda que intimamente tenha formado opinião. Não pode sequer denotar
preferência, ainda que intimamente a tenha. Bom juiz presidente no júri é o
cumpridor da lei, firme e discreto, que reconhece que de sua sublime função
depende a realização da justiça. (...) Mau juiz é aquele que se propõe a ajudar
a defesa, de modo a inclinar indevidamente a equânime balança da justiça. Mau
juiz é o juiz acusador. (...) Juiz é imparcial, aí está o seu respeito, o seu
limite, o seu maior elogio, aí está o aplauso de toda a sociedade”.
No mais, é imperioso que seja como um algodão
entre os cristais, o Promotor de Justiça e o defensor. Sobriedade, objetividade
e imparcialidade são as palavras de ordem que devem pautar sua atuação na
presidência dos trabalhos.
Como advertido por Borges da Rosa[4], “o
juiz deverá ter o cuidado necessário para não manifestar, de uma forma ou de
outra, a sua opinião de maneira a influir no ânimo do jurado, em alguma coisa,
em relação ao mérito da acusação ou de defesa”.
E é na sala secreta, o momento da decisão, que
exige do juiz presidente cautela redobrada para que, direta ou indiretamente,
não influencie os jurados na escolha dos monossílabos sim ou não.
Não há erro maior que o juiz presidente possa
cometer do que tentar, ainda que nas entrelinhas ou de modo subliminar, na
colheita da prova oral em plenário ou até mesmo pela entonação da voz na sala
secreta, induzir o jurado a votar de
determinada forma – absolvição, desclassificação, condenação, qualificação ou
desqualificação do crime.
Aliás, falar em pena, piedade, impunidade,
possibilidade de motivos de absolvição ou condenação é papel exclusivo das
partes, terreno em que é proibido o juiz palmilhar.
Às partes, então, cabem a árdua tarefa de
encontrarem os argumentos para emplacarem suas teses perante o colegiado
popular. Aos jurados, julgadores da causa, resta a tarefa de selecionarem os
argumentos encontrados pelo Ministério Público e defesa, sem prejuízo do exame
acurado dos autos[5]. E
essa missão do Conselho de Sentença deve estar livre de qualquer tipo de
ingerência direta ou indireta por parte do juiz presidente.
Outra não é a lição de Guilherme de Souza
Nucci[6]:
“Em qualquer hipótese, entretanto, não cabe ao juiz presidente explicar aos
jurados, minuciosamente, as teses expostas, as consequências da condenação ou
da absolvição e a quantidade de penas a que fica sujeito o réu, pois tudo pode
servir de influência para a formação da convicção do juiz leigo. (...) às
partes incumbe esclarecer aos jurados, com detalhes, o sentido da votação, as
consequências, as penas, dentre outros fatores”.
Os jurados, apesar de não serem versados nas
letras jurídicas e ciências afins do direito, sabem muito bem distinguir o
justo do injusto, o certo do errado, o sensato do insensato, a verdade da
mentira e, evidentemente, amealharão os dados necessários para o julgamento de
consciência trazidos pela instrução em plenário e pelas partes durante os
debates. E, assim, poderão aderir às teses ali apresentadas. A ordem natural
das coisas é que eles votem com o Ministério Público ou com a defesa, conforme
foram convencidos.
Bem por isso, basta que o juiz leia o quesito e indique qual o
monossílabo pedido por cada uma das partes.
Oportuna, mais uma vez, a lição de Guilherme
de Souza Nucci[7]:
“O juiz presidente fica encarregado de demonstrar aos jurados como se
desenvolve o julgamento, quais quesitos representam a tese da acusação e quais
deles dizem respeito à da defesa. Pode, portanto, a cada quesito que for
votado, esclarecer que o voto ‘sim’ condena e o ‘não’ absolve, ou vice-versa.
Cabe-lhe, ainda, alertar aos jurados o que cada parte solicitou: “a acusação
pede que respondam ‘sim’; a defesa pede o ‘não’”.
No mesmo sentido, ensina Heráclito Antônio
Mossin[8]:
“É recomendado, em síntese, que ao anunciar o quesito o juiz faça menção que
ele guarda pertinência com a tese da defesa ou da acusação, deixando claro ao
jurado que se votar negativa ou positivamente em relação a ele estará acolhendo
a pretensão de determinada parte”.
Não raro, há julgamento que se ganha (acolhimento da tese) em plenário,
mas que se perde (rejeição da tese) na sala secreta, exclusivamente, em razão
da má condução da votação pelo juiz.
O processo penal contemporâneo deve estar umbilicalmente ligado aos
postulados do Estado Democrático de Direito e, por consequência, ao sistema
acusatório, onde a iniciativa e ônus probatório pertencem às partes e não ao
Judiciário. Mais ainda no Tribunal do Júri, onde a postura ativa do juiz pode
ferir de morte a liberdade de escolha dos jurados em razão de potencial e
indevida influência.
Por isso, em decorrência da adoção do sistema acusatório e do sistema da
íntima convicção dos jurados, é vedado que o juiz presidente atue em
benefício de qualquer das partes, bem como influencie os jurados,
inclusive pela iniciativa probatória[9].
Não basta que o juiz atue
imparcialmente, mas é preciso que exista a aparência de imparcialidade. No
Júri, as aparências têm elevada importância, sobretudo a imparcialidade do juiz
presidente, que deve ser aparente, clara e notável. Mutatis mutandis, como Pompeia, a mulher de César, o juiz presidente deve ser e também parecer imparcial.
Teses, antíteses, argumentações e onus probandi dizem
respeito às partes. Do juiz presidente cobra-se discrição, sobriedade,
objetividade e imparcialidade nos gestos, atos e palavras.
Se assim for, e somente se for assim, os jurados estarão livres para
decidirem de acordo com a consciência e os ditames da justiça, conforme foram
compromissados quando da formação do Conselho de Sentença.
Afinal, no Tribunal do Júri a soberania da magistratura popular deve
triunfar sobre eventual soberba da magistratura judicial.
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça em Mato Grosso, Presidente da Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri), Coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri do Ministério Público de Mato Grosso e Editor do blogue Promotor de Justiça.
[1] “Evidentemente,
as indagações devem ter relação com fatos, ou seja prova dos autos e não devem
versar sobre apreciação valorativa desta ou sobre matéria de direito.”
(MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo
penal interpretado. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1221)
[2] WHITAKER,
Firmino. Jury. 6ª ed. São Paulo:
Livraria Acadêmica Saraiva, 1930, p. 23.
[3] BONFIM,
Edilson Mougenot. No tribunal do júri –
crimes emblemáticos, grandes julgamentos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013,
p. 627.
[4] ROSA,
Borges da. Comentários ao código de
processo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 571.
[5] Valem
as palavras de Calamandrei: “Pode ser que o ofício do advogado requeira mais
engenho e mais fantasia do que a do juiz: encontrar os argumentos, que é tarefa
do advogado, é tecnicamente mais árduo do que escolher, como faz o juiz, entre
os já encontrados pelas partes”. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, visto
por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 51)
[6] NUCCI,
Guilherme de Souza. Tribunal do júri.
2ª ed. São Paulo, 2011, p. 221.
[7] NUCCI,
Guilherme de Souza. Tribunal do júri.
2ª ed. São Paulo, 2011, p. 221.
[8] MOSSIN,
Heráclito Antônio. Júri: crimes e
processo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 386-7.
[9] Daí a cautela do legislador ao dispor que o juiz poderá inquirir as
testemunhas somente acerca de pontos não esclarecidos (art. 212, parágrafo
único, CPP).
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