A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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9 de setembro de 2016

Metáfora do Júri


Tênue rei, oblíquo bispo, encarniçada
rainha, peão ladino e torre a prumo
sobre o preto e o branco de seu rumo
buscam e travam sua batalha armada. 

 José Luis Borges[1]


Uma caixa de madeira contendo 32 peças: 2 reis, 2 rainhas, 4 torres, 4 cavalos, 4 bispos e 16 peões, divididos nas cores preta e branca. Quando aberta, vira um tabuleiro com 64 quadrados intercalados por essas mesmas cores. É, como diziam os antigos, o jogo dos reis, o xadrez.

É fora de dúvida que o xadrez é uma boa metáfora para a vida. Desde a sua origem, esse jogo reclama a ideia de combate.  Cada peça é carregada de qualidades, defeitos, simbologia e missão. Cada partida é uma batalha, cercada de drama, expectativa, angústia, tristeza, alegria, emoção, exaltação, contenção, tensão e apreensão. Jogadas exigem escolhas, algumas delas fatais. Uma linha muito tênue segrega a escolha certa da errada. Um simples vacilo pode significar um adeus, o fracasso. Mas nem sempre tudo está perdido numa só jogada, porque algumas escolhas, ainda que erradas, admitem, no curso da partida, a reparação. Outras, não. Infelizmente.

Embora não seja a mais poderosa, o rei é a peça mais importante. Pode muito bem simbolizar os princípios, valores e ideais mais relevantes do ser humano. A perda do rei implica na perda do jogo, do próprio sentido da vida. Não à toa, temos o roque, uma jogada especial que envolve a movimentação de duas peças no mesmo lance visando proteger o monarca. Movimenta-se a torre e o rei para protegê-lo.

A peça mais poderosa é a rainha, ainda que não seja a mais importante. É virtuosa, habilidosa e versátil. Perdê-la traz sério problema ao jogador. Na linha de frente da batalha, vão os peões. É o poder pulverizado. Pequenas forças unidas. Ao atingir a oitava casa, podem virar rainha, cavalo, bispo ou torre. Só não se transformam em rei. Rei só há um.

E as demais peças, o cavalo e o bispo? O cavalo representa o vigor, que supera obstáculos. Com movimentação em diagonal, aparece o bispo, que bem representa o poder religioso, longa manus do divino.

O jogo de xadrez, deitado num tabuleiro, representa a luta travada no cotidiano pela busca dos anseios pessoais ou até mesmo a angústia em sopesar e selecionar, dentre as possíveis, a melhor escolha frente às adversidades da existência, para a construção do destino triunfante.

Conforme ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant[2]: “O tabuleiro de xadrez simboliza a tomada de controle, não só sobre adversários e sobre um território, mas também sobre si mesmo, sobre o próprio eu, porquanto a divisão interior do psiquismo humano é igualmente o cenário de um combate.” 

E, dentro das variadas instâncias da sociedade humana, a filosofia do enxadrista também cai como uma luva no Tribunal do Júri.

Nesse palco de justiça popular, onde há o julgamento de quem é acusado de atentar contra a existência de outra pessoa, as escolhas das partes fazem toda a diferença para o resultado da causa.

A investigação, instrução do processo, preparação do julgamento, seleção do Conselho de Sentença, colheita da prova oral na sessão de julgamento e os debates finais em plenário reclamam estratégias especiais de atuação. A palavra mal ajambrada, a indagação defeituosa ou a linha de argumentação equivocada podem pôr tudo a perder. Por erro de tática, perde-se a justiça.

Dentro da estrutura judicial, o Tribunal do Júri, sem dúvida, é o espaço forense que demanda maior estratégia e planejamento de atuação do lidador jurídico. O Promotor de Justiça e o defensor devem planejar com esmero a preparação e o desenvolvimento do trabalho para, desse modo, convencerem o jurado a acolher suas teses.

Assim, Manoel Pedro Pimentel[3] acertou o alvo ao escrever isto: “um julgamento feito pelo Tribunal do Júri, ao contrário do que muitos pensam, não é uma loteria. Depende, é certo, de algumas peripécias, mas pode ser o seguro resultado de uma conduta bem planejada e executada com rigor, desde a fase do inquérito policial, até o plenário do Júri”.

É o Júri Popular um verdadeiro tabuleiro de xadrez onde as partes lutam pelo convencimento dos jurados acerca de suas teses. Luta esta incompatível com o improviso ou amadorismo, que deve ser muito bem delineada, organizada e planejada com olhos voltados ao lance fatal do xeque-mate à parte contrária e, por consequência, ao implemento de sua ideia de justiça ao caso concreto.

A verdade-síntese vem impressa no poema “Xadrez” da escritora mineira Jussara Neves Rezende[4]:

Peça tocada,
peça mexida:
um movimento
altera toda
a  breve história
- breve e única
enquanto é.
Posições trocamos,
colocamo-nos
em xeque,
evitamos
e ansiamos
o lance final.

Que peça tem
o movimento
que preciso?

Bem vista as coisas, conclui-se que cada escolha é grávida de consequências e o triunfo da justiça no palco dramático do Tribunal do Júri muito depende das decisões efetivadas pelo tribuno tal qual ocorre com cada jogador do tabuleiro alvinegro na luta renhida com o exército inimigo e das pessoas no campo de batalha da vida, com suas agruras e vicissitudes.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça em Mato Grosso, Presidente da Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri), Coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri do Ministério Público de Mato Grosso e Editor do blogue Promotor de Justiça.        



[1] BORGES, José Luis. Nova antologia pessoal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 20.
[2] CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 17.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2002.
[3] PIMENTEL, Manoel Pedro. A oratória perante o júri. In: Revista dos Tribunais, v. 628, 1988.
[4] REZENDE, Jussara Neves. Minas em mim. Machado, MG: FM, 2001.

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