A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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20 de abril de 2016

A missão da defesa no Júri



Os crimes que violam o direito de viver são julgados pelo Tribunal do Júri. Ressai do texto constitucional que a última palavra sobre os delitos de homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto pertencem à sociedade.

O caso penal é submetido a uma filtragem severa até chegar ao Tribunal do Júri. Ainda na primeira fase da persecução penal, o Ministério Público, na análise do caso, dispõe de três alternativas: o fomento de novas diligências, o arquivamento da investigação e, por último, a apresentação de denúncia ao Judiciário.

Recebida a ação penal pelo juiz, inicia-se a segunda fase da persecução penal e, após a instrução processual, ao Ministério Público e Judiciário apresentam-se quatro possibilidades: absolvição sumária, impronúncia, desclassificação ou pronúncia, passíveis de recursos às instâncias superiores.

Logo, quando o réu é encaminhado a julgamento pelo Tribunal do Júri por meio da preclusão da pronúncia um longo caminho fora percorrido. Afinal, essa providência só é possível quando houver prova segura da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou de participação.

Nas palavras de Vicente Greco Filho[1], “o raciocínio do juiz na pronúncia, então, deve ser o seguinte: segundo minha convicção, se este réu for condenado haverá uma injustiça? Se sim, a decisão deverá ser a impronúncia ou a absolvição sumária”.

Bem se vê que a decisão de pronúncia deve estar afinada com o conjunto probatório. Isso significa dizer que, com o devido controle, dificilmente um processo anêmico ou tíbio de provas será submetido a julgamento pela Corte Popular.

O defensor, privado ou público, no Tribunal do Júri tem a difícil missão de arrostar ou mitigar a acusação instalada na denúncia e delimitada na pronúncia. Informado pelo princípio da plenitude de defesa, deverá atuar para melhorar o estado jurídico do acusado. Fazer do preto ao menos o cinza escuro. Para tanto, deve defender, defender e defender, sob pena de o réu ser declarado indefeso e o Conselho de Sentença dissolvido.

É importante, então, que a autodefesa e a defesa técnica falem a mesma língua, sejam harmônicas. A dissonância entre elas pode comprometer seriamente o princípio da plenitude de defesa. 

O controle da defesa plena incumbe ao Ministério Público e ao Judiciário, respectivamente, enquanto fiscal do ordenamento jurídico e garantidor dos direitos e garantias fundamentais do acusado. 

Assim, a principal matéria-prima da defesa técnica é a versão apresentada pelo acusado. E aí reside um sério problema, uma vez que, não raro, ela vem recheada de inverdades.

A mentira é um conhecido lubrificante social. Por oportuno, vale este exemplo: não é incomum alguém, ao visitar um amigo ou ente querido adoentado e já em estado terminal, frente à fé ou ao otimismo do moribundo, dizer que ele será curado, ainda que pense exatamente o contrário. Afinal, à esta altura, dizer o que pensa soaria como o cúmulo da insensibilidade e da ausência de compaixão.

A fortiori, é natural e muito comum que o réu, com receio de sofrer a pena prevista em razão da prática do ato criminoso, se defenda pela via do escamoteamento ou embotamento da verdade. E isso vem desde o Éden com a negativa de autoria de Caim, ao ser interrogado por Deus sobre o paradeiro de Abel, depois de assassiná-lo[2].

Parafraseando Piero Calamandrei[3], a briga entre o acusado e a verdade é tão antiga quanto a que existe entre o diabo e a água benta.

Diferente do Promotor de Justiça, dono da opinião de convicção, o defensor carrega a opinião de conveniência. Isto é, deve lançar mão de tese conveniente para o réu, ainda que sua convicção seja outra sobre a causa.

Cabe aqui mencionar o pensamento espirituoso de Evandro Lins e Silva[4]: “Dizem que a advocacia é profissão liberal, mas não é. Em vez de um patrão, tenho cem patrões, que são todos os meus clientes. Devo satisfação a todos eles...”

Afinal, como acrescentou Marco Luchessi[5], invocando a clássica lição de Giuseppe Zanardelli, “o patrocínio de uma causa má não é só legítimo, senão obrigatória; porque a humanidade o ordena, a piedade o exige, o costume o comporta, a lei o impõe… e os honorários convencem, seduzem e arrastam, sem que se possa esboçar reação”[6].

Então, no Júri, é comum a defesa distanciar-se da verdade factual[7] e apegar-se à versão mais conveniente ao acusado. Para tanto, não raro, conta aos jurados aquilo que gostaria que fosse e não é. Parafraseando Cecília Meireles[8], para a defesa, só é verdade aquilo que lhe convém”.

Assim, em razão do princípio da plenitude de defesa e do quesito obrigatório de absolvição, há um amplo cardápio de teses, jurídicas e extrajurídicas, à disposição da defesa.

De duas, uma: o acusado nega ou justifica o crime. A confissão pura e simples é coisa rara. Há teses e argumentos para todos os gostos. Não bastasse isso, a estratégia de confundir os jurados é frequentemente utilizada.

A propósito, esse é o sentido da orientação do advogado João Meireles Camara[9], que desfruta de vasta experiência na advocacia criminal: “Sabemos que quando o caso está muito difícil, com uma condenação certa, ao conseguir confundir os jurados, estamos fazendo um grande trabalho em favor da defesa...o orador nunca deve mentir, mas, se o fizer, deve dar tanta ênfase, de modo aparecer verdade”.  

Não à toa que o artigo 23 do novel Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil dispõe que “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”.

Na linguagem dos antigos, o defensor é o vozeiro, o arrazoador, o porta-voz do réu[10], que fala em seu nome, não fala por si, mas por outrem e, no exercício da profissão, obriga-se a dizer mesmo aquilo que contraria suas próprias convicções[11].

Parafraseando Irving Stone[12], “o papel tradicional do defensor no Júri é servir aos interesses do acusado, contra todo e qualquer adversário, alcançar os seus propósitos por todo e qualquer meio”.

Logo, uma estratégia frequentemente utilizada em plenário, baseada no lema anglo-saxão the best defense is a good ofense, é o ataque ao Ministério Público. Como diz o renomado advogado norte-americano Alan Dershowitz[13], “na defesa de acusados criminosos – especialmente os culpados – é usualmente necessário colocar a ofensa contra a acusação; colocar a acusação em julgamento... No Direito como nos esportes, a melhor defesa é usualmente um bom ataque”.

Na mesma linha, é a antiga lição de Roberto Lyra[14]: “É velho o conselho de Barbox, celébre batonnier: Em desespero de causa, competem ao advogado dois deveres: bajular o juiz e desmoralizar o acusador”. “Uma carranca, uma voz grave, tremida, altissonante, um dedo em riste visam, não o legislador que dita a sanção, não o juiz que traz o ‘inocente’ a plenário, não o réu que pratica o crime, mas o Promotor Público”.

Fato é que, por mais chocante que seja o crime, todo acusado tem o direito à defesa técnica, privada ou pública. Essa providência deve ser rigorosamente observada, sob pena de inquestionável nulidade absoluta.

Daí a relevância do papel da defesa no Tribunal do Júri, pois se apresenta perante a sociedade como a última porta de esperança do réu em ver a pena arrostada ou arrefecida, em nome do princípio da plenitude de defesa e do direito à liberdade.

Defender até mesmo o indefensável. Uma missão hercúlea e árdua é a da defesa, mormente no Tribunal do Júri.

Enfim, seguindo os ensinamentos da famosa carta de Rui Barbosa[15] a Evaristo de Moraes, redigida em 26 de outubro de 1911, que fora positivada pelo citado artigo, a conclusão é que não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado, ainda que tenha opinião diversa, agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais. E é no Tribunal do Júri que esse papel é exercido ostensivamente junto à sociedade, em homenagem à defesa plena e ao direito à liberdade.


Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso e Editor do blogue Promotor de Justiça. 



[1] GRECO FILHO, Vicente. Questões polêmicas sobre a pronúncia. Tribunal do júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT, 1999, p. 119.
[2] Bíblia, Gênesis 4:9.
[3] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 121.
[4] SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira – FGV, 1997, p. 320.
[5] LUCCHESI, Marco. O Dom do Crime. Rio de Janeiro: Record, 2010, pp. 13-14
[6] Trecho aditado por Marco Lucchesi na obra citada.
[7] ARENDT, Hannah. Verdade e política [1964/1967]. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1972.
[8] MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
[9] CAMARA, João Meireles. No plenário do júri. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 20.
[10] OLIVEIRA, João Gualberto. História dos Órgãos de Classe dos Advogados. São Paulo, Indústria Gráfica Bentivegna, 1968, p. 136.
[11] No mesmo sentido: THOMPSON, Augusto. O advogado de defesa II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992, p. XXV.
[12] STONE, Irving. Advogado da defesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002, p. 14.
[13] DERSHOWITZ, Alan. The best defense. New York: Vintage, 2011.
[14] LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Sérgio Antonio Fabris, 2001, p. 63.
[15] BARBOSA, Rui. O dever do advogado. São Paulo: Rideel, 2006.

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